"Assassinos da Lua das Flores" é mais uma obra-prima de Martin Scorsese
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Muito já se discutiu sobre o massacre de nativos-americanos no Cinema dos Estados Unidos. Filmes, séries, livros e não apenas em Hollywood, como também em filmes independentes. Embora já tenhamos visto algumas obras realmente dignas de nota sobre esse tópico triste e delicado da história do país norte-americano, nada se compara a Assassinos da Lua das Flores, cujo roteiro é adaptado do livro de não ficção de David Grann e acompanha a carnificina que ocorreu na região centro-sul, mais precisamente, Oklahoma. Os índios da tribo Osage viviam tranquilamente em suas terras até elas repentinamente começarem a jorrar petróleo. A descoberta do chamado ouro negro atraiu os olhares dos "homens brancos", que invadiram o local à procura de uma fatia dos voluptuosos lucros que o solo cuspia aos montes. O recorte escolhido foi o da década de 20, quando os tidos "brancos" já estavam tão impregnados no local que os índios deixaram de ser meros nativos para se tornarem uma inconveniência.
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Principalmente para Bill Hale (Robert De Niro) que aproveitou todas as oportunidades oferecidas pelo lugar. Não apenas enriqueceu às custas do petróleo, como ampliou seu vasto rancho e conquistou um prestígio impressionante, gozando de influência até mesmo com os Osage, com quem possui um relacionamento mais complexo do que parece. Por mais que seja um personagem político poderosíssimo, o protagonista da história é Ernest Hale (Leonardo DiCaprio), sujeito que desembarca na estação de trem trazendo pouco mais do que algumas roupas e as sequelas de seu trabalho na guerra, onde desempenhou a função de cozinheiro. Ernest chega para trabalhar com o tio, que imediatamente o coloca para ser uma espécie de taxista, já que está impossibilitado de fazer esforço. Mas Bill não visa apenas o bem-estar do sobrinho, mesmo que use sua retórica reconfortante para fazer com que o homem se sinta querido e acolhido. Ernest se torna peça-chave no plano maquiavélico de Bill para tomar conta das terras de uma família Osage. E quando o motorista se aproxima de Mollie (Lily Gladstone), o patriarca da família Hale agarra a chance que lhe faltava.
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Quem reclama da duração de Assassinos da Lua das Flores ou não conhece a filmografia de Martin Scorsese ou desacostumou a acompanhar o trabalho do diretor de A Última Tentação de Cristo (164 minutos), Cassino (178 minutos), Gangues de Nova York (167 minutos), Silêncio (161 minutos), O Lobo de Wall Street (180 minutos) e, claro, O Irlandês (210 minutos). A verdade é que Scorsese não faz o que se convenciona chamar de “encher linguiça”, pois a produção não apenas tem um ritmo impecável (fruto principalmente de mais uma colaboração com a excepcional montadora Thelma Schoonmaker), como justifica sua extensa experiência. Além de cada minuto ser aproveitado dentro da narrativa, é fascinante notar a dimensão que os crimes da família Hale tomam (e o fato de só despertarem alguma reação das autoridades federais no terço final é absolutamente calculado).
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Por falar em crime, a obra pode não contar com mafiosos engravatados, mas renderá uma ótima sessão conjunta com Os Bons Companheiros, o já citado Cassino e tantos outros clássicos do cineasta. Isso porque Bill Hale poderia facilmente estar no mesmo nível de Tommy DeVito ou Frank Costello e só não está porque, na verdade, é muito mais perigoso. Orador invejável, Hale é aquele tipo de pessoa capaz de proferir as palavras mais calorosas e reconfortantes apenas por puro interesse. É justamente sua gentileza que o torna uma figura temível, capaz de abraçar um adversário num instante e apunhalá-lo em seguida. Ou mandar alguém fazer o serviço, já que Hale também se mostra incapaz de fazer, ele mesmo, o trabalho sujo.
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Hale também marca o retorno de Robert DeNiro à boa forma, renovando não só seu evidente apetite pela atuação, mas também a esperança do espectador de vê-lo voltando a atuar em alto nível. Outra marca histórica de Killers of the Flower Moon (no original) é reunir DeNiro e Scorsese, cuja parceria começou há exatos 50 anos (com Caminhos Perigosos) e chega ao 11º filme. Racista (está constantemente chamando negros de “crioulos”), Bill Hale é o típico mentiroso que acredita nas próprias lorotas e mesmo exibindo graves desvios de caráter, não hesita em bradar sobre sua “integridade”. Vencedor do Oscar pela primeira vez por Touro Indomável (quarta colaboração com o cineasta), o veterano transforma Bill Hale num personagem multifacetado: é alguém que pauta todas as suas relações pelo interesse, até mesmo quando se trata de familiares, como o caso de Ernest.
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Vivido por Leonardo DiCaprio, com quem Scorsese começou a colaborar em 2002 e já está no sétimo filme, Ernest (note a semelhança com "earnest", que em inglês também significa "sincero") talvez seja o papel mais peculiar da carreira do premiado ator (Oscar por O Regresso, de 2015). Afinal, DiCaprio não está acostumado a interpretar imbecis e o protagonista de Assassinos da Lua das Flores se destaca facilmente em sua carreira. Adotando um sotaque carregado, fruto de sua composição física (note o queixo projetado para frente, ao estilo Jeff Bridges), o ator faz de Ernest um homem tão ingênuo que torna menos difícil para o espectador tolerar os crimes que comete. Sem perceber que é visto como um simples peão pelo tio, ele várias vezes borra a linha tênue entre o que acredita ser verdade e o que aceita como a verdade. Os modos rústicos, as explosões de emoção e o comportamento permissivo perante o coronelismo de Bill transformam o personagem numa combinação sempre perigosa. O mais impressionante é que num elenco que ainda conta com as participações especiais de John Lithgow e Brendan Fraser (que acabou de levar a estatueta de Melhor Ator para casa, por A Baleia), é Lily Gladstone que se revela o grande e inquestionável destaque, fazendo de Mollie uma mulher forte, expressiva e mais uma figura emblemática da vasta carreira de Martin Scorsese.
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Que por sua vez merece elogios pelo respeito e pela reverência com que conta a história dos Osage, algo refletido pela excepcional trilha do compositor canadense Robbie Robertson (outro veterano colaborador do diretor e que finalmente deve receber sua primeira e merecida indicação ao Oscar). É interessante notar, por exemplo, como Scorsese enriquece a linguagem de seu filme com trechos extraídos de filmagens antigas (ou emuladas para tal), possibilitando uma sequência-chave ao final e que, homenageando as radionovelas, inclui uma ponta surpreendente e que ganha uma conotação ainda mais importante dado o contexto. Tecnicamente impecável, Scorsese ainda se dá ao luxo de incluir uma passagem memorável em que um mero movimento de câmera revela um flashback da forma mais elegante possível.
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Retrato do poder esmagador do imperialismo estadunidense e da hipocrisia de seus rufiões capitalistas, Assassinos da Lua das Flores é o atestado inexorável de um cineasta que segue em evolução mesmo aos 80 anos de idade, demonstrando disposição para uma vez mais requintar a Sétima Arte.
NOTA 10