'Assassino Por Acaso' mescla gêneros ao promover entretenimento inteligente
Exibido sob aplausos no Festival de Veneza, Assassino Por Acaso chegou ao Festival do Rio em cima da hora, fazendo a alegria dos fãs do cineasta Richard Linklater (Antes do Amanhecer, Boyhood). Depois de assistí-lo, torna-se imediatamente incompreensível o fato de o longa-metragem ter sido exibido fora de competição em Veneza, um crime hediondo não apenas pela qualidade da produção, mas especialmente por Glen Powell, ator e dublê de 33 anos que finalmente recebe um papel de protagonista à altura de seu talento. Em sua quarta colaboração com o realizador cinco vezes indicado ao Oscar, Powell interpreta Gary Johnson, professor universitário que leciona psicologia e filosofia por meio-período e passa o restante do dia prestando consultoria para a polícia. Morando numa casa confortável com seus dois gatos (chamados Id e Ego), Johnson é também o narrador da história, oferecendo informações para o público como se estivesse num divã.
Sua vida muda repentinamente quando é escalado pela delegacia para assumir o lugar de um policial que acaba de ser suspenso por agredir adolescentes (“maldita cultura de cancelamento!”, reclama o recém-suspenso). Sua função? Fingir ser um assassino profissional para prender pessoas que estejam procurando alguém disposto a cometer um homicídio. Tímido e confortável na posição burocrática que possui, ele resiste, mas eventualmente acaba cedendo. É aí que o inesperado acontece, pois Gary se transforma completamente quando entra no restaurante para encontrar seu suposto “cliente”. Ameaçador, confiante e, o principal, absolutamente convincente, o professor impressiona seus superiores e cumpre a missão de realizar uma prisão, sob o pretexto de ter salvo uma vida.
Apesar de ter frequentado aulas de teatro na juventude, o fato de ter descoberto sua verdadeira vocação não passa apenas por interpretar papéis (ele se disfarça a cada missão, de acordo com o perfil de cada suspeito), mas sim por enxergar seu novo cargo como uma oportunidade ímpar de alimentar seu fascínio pela consciência e pelo comportamento humanos. Como acadêmico, ele se vê numa pesquisa de campo, não num caso de polícia. Dessa forma, ele pode observar de perto seu maior objeto de estudo: o ser humano, colocando em prática toda a teoria que leciona aos seus alunos (em sequências elucidativas que ainda incluem citações a Nietzsche e Kant).
O problema é que ele acaba se compadecendo com Maddison (Adria Arjona), presa num relacionamento abusivo e que busca os serviços do suposto matador de aluguel para dar cabo do marido. O encontro entre os dois gera um magnetismo instantâneo, tanto que Gary não hesita em recusar o serviço, aconselhando a moça a usar o dinheiro para sair de casa e buscar uma nova vida, longe de problemas. Um momento de fraqueza profissional que levanta um questionamento: ele realmente impediu um homicídio? Essa resposta ele eventualmente terá, pois acaba se aproximando a ponto de iniciar um relacionamento com Maddison.
Escrito pelo próprio Glen Powell ao lado do diretor Richard Linklater, Assassino Por Acaso, por incrível que pareça, é baseado na história real de Johnson (falecido em 2022 aos 75 anos), relatada no artigo escrito pelo jornalista Skip Hollandsworth e publicado na revista Texas Monthly. Mescla de uma série de gêneros e subgêneros, é possível encontrar ecos de um legítimo noir, tropos abundantes de uma saborosa comédia romântica e pitadas do que de melhor a screwball comedy tem a oferecer. Essa mistura é uma especialidade de Linklater, diga-se de passagem, acostumado a navegar por quase todos os tipos narrativos descritos acima. É justamente o seu talento que faz com que a obra promova quase duas horas do mais puro e genuíno Cinema, capturando a atenção do espectador de forma arrebatadora enquanto desfila surpresas e reviravoltas.
Sim, porque Hit Man (no original) não é apenas extremamente divertido (cada disfarce de Gary rende uma generosa parcela de gargalhadas), há espaço de sobra para guinadas narrativas, uma proeza quando percebemos que o enredo funciona dentro de uma estrutura pré-estabelecida e bem conhecida pelo espectador. O melhor de tudo é que por mais que suspeitemos aonde a trama chegará, a jornada é muito mais gratificante do que o destino. Assim que Gary e Maddison se encontram pela primeira vez, por exemplo, não é difícil antever os passos que serão dados até o clímax. Nesse meio-tempo, porém, somos distraídos por eventos ora fascinantes, ora hilariantes. Estamos lidando com um professor de psicologia, afinal. Isso proporciona a Powell e Linklater brincarem com a metalinguagem, construindo momentos em que ator e personagem se unem na arte dramática.
E os argumentos são bons, pois nosso herói explica conceitos como Id, Ego e Superego para dissertar sobre o comportamento humano, enriquecendo o conhecimento do espectador enquanto dá dicas sobre o que acontecerá. Nessa brincadeira mortal engenhosamente arquitetada pelos roteiristas, a inocência é uma mera ilusão. É fascinante e assustador perceber as mudanças do protagonista e a forma como coloca em prática tudo o que ensina.
Powell, claro, agarra a chance de poder demonstrar toda a sua versatilidade, divertindo-se a valer no processo. Note a linguagem corporal que ele adota quando Gary está na faculdade e os modos espalhafatosos que assume nos trabalhos policiais, por exemplo, e você testemunhará um talento bruto nas telas, algo do qual só tivemos sinais em filmes como Top Gun: Maverick (quando emulou com facilidade os trejeitos de Val Kilmer) e Irmãos de Honra. O texano é perspicaz ao evitar cair na armadilha de transformar Gary Johnson no típico nerd desajeitado, exaltando a inteligência e o raciocínio rápido do homem mesmo sob pressão. A porto-riquenha Adria Arjona não faz muito diferente, deixando para trás bombas como Justiça em Família e Morbius para abraçar um papel que se beneficia imensamente da química com o protagonista.
É uma pena que tamanho brilhantismo acabe sendo substituído por um desfecho artificial em sua tentativa de mastigar a moral da história para o público, culminando numa cena que parece extraída de um comercial de margarina. Isso, porém, acontece apenas nos minutos finais e não apaga a experiência complexa e diabolicamente divertida oferecida por Assassino Por Acaso, um dos destaques deste Festival do Rio 2023.
NOTA 8,5
Crítica originalmente publicada durante o Festival do Rio 2023
Assisti. EXCELENTE filme. Crítica também EXCELENTE. Parabéns.