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'Anora' inicia bem, mas se estende na piada até perder o brilho

Foto do escritor: Guilherme CândidoGuilherme Cândido

Gosto muito do trabalho de Sean Baker, cineasta que desde o início do milênio vem construindo uma filmografia na qual dá voz a figuras marginalizadas da sociedade. Muito se falou sobre o fato de Tangerine ter sido gravado num iPhone 5S, mas pouco generosa foi a repercussão do protagonismo ter sido dividido entre duas transsexuais. Já em Projeto Flórida, a história girou em torno de uma trabalhadora sexual passando dificuldades com sua filha pequena e Red Rocket mostrou um ex-ator de filmes adultos voltando à sua cidade-natal em busca de um recomeço. Dotado de sensibilidade suficiente para criar pequenos universos repletos de toda a beleza e complacência da qual a maioria da população prefere desviar o olhar, Baker é partidário de um Cinema empático, mas sem soar panfletário, toca em assuntos pesados, mas sempre com leveza, aborda a dureza da vida, ainda que com bastante humor. Não por acaso, suas produções dificilmente deixam de produzir gargalhadas, mesmo que alternadas com lágrimas. Antes um diretor underground, agora membro do seletíssimo grupo de cineastas vencedores da Palma de Ouro.

E não dava para esperar um resultado diferente vindo de um júri composto por Hirokazu Kore-eda, Eva Green, Omar Sy, Lily Gladstone (entre outros) e presidido por ninguém menos do que Greta Gerwig. A celebração de um artista como Sean Baker é válida, mas o contraponto torna a honraria agridoce, já que Anora não deveria ser encarado como seu magnum opus. Assim como usualmente acontece com a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas, Cannes apressou-se em reconhecer a obra de um talento único. Lembremos de Martin Scorsese, autor de pilares da Nova Hollywood como Taxi Driver e Touro Indomável, levando o Oscar por... Os Infiltrados. Alguns agravantes devem ser pontuados, contudo. Baker ainda é jovem, tem algumas décadas produtivas pela frente e seu brilhantismo não deveria ser ignorado por muito mais tempo. E para não dar margem a ruídos, Scorsese não está apenas algumas dezenas de prateleiras acima de Baker, como eles sequer ocupam a mesma estante. Mantendo a cristalinidade do texto, Anora passa longe (muito até) de ser um filme ruim, pena que é praticamente a mesma distância do nível de excelência já apresentado por seu realizador.

O estadunidense é ágil ao utilizar as primeiras páginas do roteiro para reivindicar a autoria de Anora, apresentando traços inconfundíveis de sua filmografia, para que não haja dúvidas quanto ao responsável pelo trabalho. Anora, ou Ani, como gosta de ser chamada, é uma dançarina erótica que abre a projeção nos dando um sugestivo vislumbre de seu ofício, exibindo suas curvas ao som de uma canção forte, outra marca registrada de Baker. A complacência e o companheirismo dos bastidores, com as mulheres apoiando-se ao compartilharem dicas sobre clientes e a rotina de trabalho, ilustram o calor humano do ambiente, característica convergente ao discurso do cineasta. É tudo tão objetivo, tão sucinto e tão preciso, que quando os créditos de abertura terminam, já estamos completamente imersos em seu microcosmo.

Tanto que quando Ani sai do trabalho para casa, a familiaridade é instantânea, mas não se engane, pois Baker precisa deixar claro que a casa que ela divide com uma amiga é fruto de muito suor derramado diariamente num clube de Manhattan. É nesse estabelecimento, inclusive, que ela acaba conhecendo, quase de soslaio, o sujeito responsável por uma tresloucada guinada em sua vida. Por ser a única dançarina a dominar o idioma russo, ela é direcionada para Vanya, um garoto de vinte e um anos com muita disposição e dinheiro para gastar. A sinergia entre os dois é tão grande e formada tão rapidamente, que Vanya, ou Ivan, como quer ser chamado em terras estadunidenses, não demora a convidar a moça para conhecer sua “humilde residência”. Pagando muito bem para isso, claro.

Assim, o contraste se forma como peças de um quebra-cabeça se encaixando em tempo real na tela. Ivan é o filho mimado de um famoso oligarca russo, do tipo cuja fortuna é tão grande que nenhum familiar reconheceria limites ao vê-los. Ivan, logicamente, é quem mais se aproveita dessa prosperidade exacerbada, gabando-se de ter um “orçamento ilimitado”. É importante frisar, no entanto, que Ani não faz o tipo exploradora, pois a iniciativa parte sempre do cliente, tão rico que mal consegue conter o riso ao perguntar o preço que ela cobraria para passar uma semana com ele. Uma mera formalidade.

Se há um folclore a respeito da facilidade com que endinheirados se entregam aos risos, Ivan serve como sua personificação, mas não de um jeito bonachão, como se nenhum problema fosse grande o bastante para fazê-lo esquecer de que pode tudo. Ao contrário de Ani, uma jovem adulta que batalha para garantir o próprio futuro, o aspirante a magnata parece que jamais crescerá. Com jeito de adolescente, para ele nada é sério, tudo é entretenimento. E entretenimento feito especialmente para ele, ou perde a graça e ele parte para outra. Essa dinâmica de opostos assimétricos, como já era de se esperar, funciona com a precisão de um relógio suíço nas mãos de Sean Baker, fazendo do primeiro ato o melhor e mais coeso de todo o filme.

Infelizmente, essa conexão criada com o espectador vai pelos ares quando o diretor resolve implodir a ótima estrutura que ele mesmo tão bem concebeu, introduzindo um batidíssimo casamento impulsivo em Las Vegas apenas para pavimentar o incidente incitante da trama, representado pela forma como a família de Vanya recebe a notícia do seu matrimônio. Enfurecido, o braço direito de seu pai invade a mansão buscando respostas e exigindo a anulação dos documentos. Nada que alguns diálogos incompreensíveis em russo não resolvam, mas ao descobrir que os pais embarcaram para os Estados Unidos a fim de fechar sua torneira de dinheiro infinito, tudo muda. Seria leviano ignorar o fato de que Ivan até convida Ani para fugir com ele, mas como assim? Ele é um adulto, afinal, e responde pelos próprios atos. Qual o problema? A resposta? Ele é um moleque imaturo que não faz a menor questão de esconder sua personalidade infantil. Escapa sozinho, deixando uma granada sem pino nas mãos da pobre Ani.

A partir desse ponto, Anora deixa de ser uma releitura moderna e escrachada de Uma Linda Mulher para se tornar algo que vai além do absurdismo de suas situações. No início, é possível se divertir às custas do caos cartunesco instaurado na mansão, com gritaria, corre-corre e pancadaria generalizada. O problema, é que Sean Baker insiste na piada, estendendo-a até a graça escorrer por suas mãos e escancarar ao espectador ter passado do ponto. A virada de chave acontece quando Ani e os capangas do pai de Ivan saem para procurá-lo, convertendo a narrativa numa experiência repetitiva e desgastante, como observar um cachorro exausto de tanto perseguir o próprio rabo.

A trama (assim como a galeria de personagens) anda em círculos enquanto Baker parece tentar encontrar um jeito satisfatório de embicar para a conclusão, mas tudo o que ele consegue fazer é pegar o próprio filme e embicar para o abismo. O arrastado segundo ato, longe de acabar, soa como um dispositivo barato para inflar a duração na tentativa de gerar um (ilusório) clima de epopeia. E a realidade bate forte, pois de onde menos se espera, é que nada virá e assim acontece com Vanya, sua família e o próprio filme, caminhando de mãos dadas rumo a um epílogo supostamente (ou pretensamente?) reflexivo.

Anora é como uma longa viagem a bordo de um trem luxuoso: extremamente divertida no início, com esparsos motivos para se apegar à esperança durante a metade, mas que se torna entediante à medida que percebemos que o destino nem será tão deslumbrante como havíamos imaginado. De recordações, apenas a euforia da partida e a escatologia, pois caminhos sinuosos podem provocar vômitos, não se esqueça (o condutor não esqueceu).

Mikey Madison, em sua entrega e pela força que exibe ao permanecer inabalável mesmo tendo que reagir às circunstâncias mais estapafúrdias, merecia um final à altura da construção de sua excepcional personagem. Sean Baker é melhor e mais sofisticado que isso, o que me mantém auspicioso quanto à lição que ele certamente aprendeu: quando não lembramos o final de uma piada, é melhor encerrar antes que se torne um desastre para quem estiver ouvindo.


NOTA 7,5

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