"Ainda Estou Aqui" promove exercício de empatia com brilho de Fernanda Torres
“Na história do cinema brasileiro, quando você tenta colocar a cerca para ver quem é documentarista e quem é cineasta de ficção, vê que é completamente inútil. Todos, de Humberto Mauro a Kleber Mendonça Filho, fizeram documentário, que é parte intrínseca do Cinema, assim como a ficção.”
Essa afirmação foi feita pelo curador e Crítico de Cinema Amir Labaki (a entrevista completa, com Walter Salles, pode ser acessada aqui), criador do É Tudo Verdade, tradicional festival de documentários. E dá para ir além, pois, geralmente, o primeiro exercício demandado numa faculdade de Cinema envolve justamente um documentário. É a porta de entrada, não tem jeito e Walter Salles não poderia ser a exceção, até porque, a verve documentarista está presente em sua linhagem (o soberbo Santiago foi dirigido por João Moreira Salles, seu irmão). Ora, a ideia por trás de Central do Brasil (1998), seu maior sucesso, surgiu através do curta-documental Socorro Nobre (1996) e Diários de Motocicleta (2004) originalmente seria um doc. Mas, como poucos, Salles sabe usar a seu favor essa afinidade com a linguagem documental. É objetivamente essa abordagem mais natural, quase crua, que cai como uma luva ao retrato intimista da família Paiva neste Ainda Estou Aqui, adaptação do livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva laureada com o prêmio de Melhor Roteiro no Festival de Veneza, cuja sessão foi encerrada com uma acalorada salva de palmas que durou quase dez minutos.
Quem chegar ao filme através da sinopse, pode imaginar mais um drama pesado sobre o que acontecia nos porões da ditadura, já que a trama, ambientada nos anos 70, aborda o desaparecimento do engenheiro Rubens Paiva, preso e torturado durante a ditadura militar, vítima da famigerada “caça aos comunistas” que até hoje é reverberada na política nacional. Classificar Ainda Estou Aqui como um filme político, no entanto, não seria acurado. Por adotar a perspectiva da família de Paiva, o direcionamento do público é inevitável, mas o olhar de Salles não está voltado para o discurso e, sim, para o coração. Sua obra não propõe um debate ideológico, mas um exercício de empatia. Em última análise, Ainda Estou Aqui não é um filme político. É um filme humano.
E a narrativa já começa com o pé na porta, abrindo a projeção com Eunice Paiva (Fernanda Torres) boiando serenamente no mar da praia do Leblon. Sua tranquilidade, porém, é interrompida pelo som ensurdecedor de um helicóptero sobrevoando o lugar, voltando de alto-mar (quem conhece a História e os procedimentos do regime militar sabe o motivo desse trajeto). Ela imediatamente fica em estado de alerta, observando aquele ponto escuro cruzar o céu azul carioca. É um plano brilhante por sintetizar em poucos segundos a jornada de uma mulher que tem seu ponto de equilíbrio destroçado por um regime sombrio.
Depois disso, somos apresentados aos demais membros da família, com Rubens destacando-se facilmente graças à composição leve e simpática do sempre carismático Selton Mello. A ideia não é apenas mostrar que a âncora daquele núcleo de personagens é um pai de família amoroso, dedicado e que sabe desfrutar dos prazeres da vida. Os Paiva funcionam, de fato, como um grupo absolutamente harmonioso, daquelas famílias típicas da Zona Sul que não dispensam uma boa festa e vivem à beira-mar. Adoram receber amigos e se divertem como ninguém, cantando e dançando. Os modos rígidos de Fernanda Torres não denotam uma mulher dura, mas uma mãe permanentemente preocupada com o bem-estar de seus chegados, algo que a televisão faz questão de colocar em xeque através da cobertura sobre as barbaridades cometidas pelos milicos. Já Rubens, mal consegue elevar a voz ao pedir mais cuidado à filha. Quando Marcelo invade o escritório fazendo perguntas em excesso e interrompendo seu fluxo de trabalho, o patriarca simplesmente deixa tudo de lado e vai jogar totó com o menino.
É fácil subestimar esses primeiros minutos aparentemente inofensivos, mas o calor humano evocado pelos personagens é peça-fundamental na engrenagem construída por Salles ao lado dos roteiristas Murilo Hauser (do ótimo A Vida Invisível) e Heitor Lorega (do bom Marinheiro das Montanhas). Para que a segunda metade da história funcione, é preciso que forjemos uma conexão simbiótica com Eunice, Rubens e seus cinco filhos. Na construção dessa atmosfera de acolhimento, Walter Salles e o diretor de fotografia Adrian Teijido (da série Dom) mantém a câmera sempre próxima dos personagens (repare como alguém quase se choca com a tela durante uma sequência de dança), além de empregar uma razão de aspecto mais limitada que reforça o caráter documental pretendido. Dessa forma, nos sentimos parte daquele grupo e é precisamente dessa sensação que Salles necessita, para dar início ao avassalador segundo ato.
A saída de Rubens, para prestar “esclarecimentos” junto de oficiais à paisana (cujas vestimentas jamais abandonam os tons escuros, vale lembrar) estabelece uma virada de chave que substitui o lúdico pela tensão, com um clima cada vez mais opressor. Como diz Eunice em determinado momento “o desaparecimento é uma tática cruel (...) Mata-se alguém e condena-se seus familiares à tortura eterna”. A escolha de palavras não poderia ter sido mais adequada, pois a desestruturação da família acontece aos poucos, com o psicológico de cada um definhando. Assemelhando-se a um thriller, o filme lança mão de artifícios como paranoia e apreensão, representando o vazio deixado por Rubens Paiva, mas paulatinamente preenchido por Eunice, mesmo que a fórceps.
É nesse ponto que devemos nos render à Fernanda Torres, uma atriz que já nasceu sob a colossal sombra de sua mãe, um ícone brasileiro que, inclusive, já havia trabalhado com Walter Salles. O cineasta, aliás, merece ainda mais elogios pela decisão acertada de depositar todas as suas fichas na protagonista. Caso estivesse nas mãos de uma intérprete menos capaz, Eunice talvez ficasse aquém do desafio e limitasse o escopo da produção. Mas Torres é uma força da natureza, compondo a matriarca como um poço silencioso de resiliência. O que chama atenção, logo de cara, é a entrega da carioca, que adota uma composição disciplinada, num tom de voz baixo e cadenciado aliado a modos sempre controlados, mas é nos detalhes que podemos constatar a genialidade de sua performance.
Há um momento, por exemplo, que beira o sublime: Eunice recebe uma boa notícia e, como toda boa mãe, decide sair para comemorar com os filhos, levando-os à sorveteria. Beneficiada pelo olhar sensível de Salles, ela nem precisa abrir a boca para evocar um turbilhão de emoções. Repare como Eunice observa outras famílias, felizes como a sua já foi, com os olhos marejados, mas lutando internamente para que seus filhos não percebam a saudade que está sentindo no momento. É o tipo de sequência capaz de garantir prêmios. Torres é a alma de Ainda Estou Aqui, carregando com extrema desenvoltura e sensibilidade o enorme peso emocional do filme.
Que infelizmente se dispersa por alguns momentos, chegando até a revelar uma assimetria por parte da estrutura narrativa ao demonstrar irregularidade nos saltos temporais, o que provavelmente frustrará os admiradores de Fernanda Montenegro, cuja participação, apesar de inquestionavelmente impactante, é diminuta. Salles, por outro lado, faz o mais difícil, que é contornar a exposição ao soltar informações através de jornais televisivos, por exemplo, usufruindo de uma recriação de época irrepreensível (carros, imagens de arquivo e até embalagens de achocolatado são fielmente reproduzidos, demonstrando o apego aos detalhes por parte da direção de arte). Falando nisso, a ambientação se dá também através de filmes e músicas (algumas escolhas, como “É Preciso Dar Um Jeito, Meu Amigo”, de Erasmo Carlos, se mostram certeiras). Até alguns caminhos mais mundanos, como a tocaia na frente da casa da família ou a reação intransigente dos filhos perante uma mudança, são suavizados.
Como se não bastasse, o longa ainda flerta com a excelência em mais aspectos técnicos, como o design de som, que é bem aproveitado não apenas para amenizar o impacto de algumas passagens potencialmente chocantes, como servem de transição e, principalmente, enriquecem o ambiente, como, por exemplo, nas sequências que acontecem no interior de uma instalação militar. Gritos e grunhidos fazem parte de uma paisagem sonora que já seria suficiente para ilustrar os horrores daquele local, mas o design de produção, mais uma vez, merece créditos por concebê-lo como um cenário que mais parece ter saído de um filme de terror (as paredes desgastadas, a iluminação precária e a paleta acinzentada representam uma combinação de dar arrepios).
Mas Ainda Estou Aqui jamais trai sua ideia inicial de fornecer um retrato humano de um período marcado pela monstruosidade e esse é outro diferencial do longa-metragem, distanciando-se de um filão que já conta com décadas de tradição. Não espere ver pessoas sendo brutalizadas (como em Baixio das Bestas) ou lutas armadas sendo travadas nas ruas (como no recente Marighella). Espere, sim, por um enfoque humanista e, por que não, inspirador. Afinal de contas, obras como essa, infelizmente, precisam continuar existindo e, a julgar pela falta de punição aos criminosos fardados, o povo precisa conhecer sua História, para que ela jamais se repita.
NOTA 9