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Foto do escritorGuilherme Cândido

'A Semente do Fruto Sagrado' expõe ditadura teocrática iraniana

*Filme visto durante o Festival do Rio 2024



Principal adversário do Reino da Arábia Saudita na competição pelo título de ditadura teocrática mais desumana do planeta, o regime Iraniano tem uma vasta tradição de perseguir artistas, principalmente cineastas que “ousem” mostrar ao mundo como vivem os cidadãos iranianos, principalmente as iranianas. Nem chega a ser particularmente uma provocação e duvido que sejam motivados por audácia, já que qualquer ser humano de boa índole tomaria a iniciativa de denunciar os abusos de um Estado não apenas propenso a censurar povo e imprensa, mas a oprimir, reprimir e, pior, matar. Estamos falando de uma nação que enxerga as mulheres como criaturas inferiores, destituídas de qualquer traço de personalidade ou vaidade e cujo único propósito social é servir ao homem. Como não se opor? Como não se levantar e fazer algo para mudar?

Foi com essa iniciativa que grandes nomes do Cinema Iraniano, como Abbas Kiarostami e Jafar Panahi, presos por terem denunciado em seus filmes as mazelas do país cujo território já pertenceu ao Império Persa, motivaram uma nova geração de realizadores. Mas estamos em outros tempos e eles não estão sozinhos. Tanto que Asghar Farhadi, duas vezes vencedor do Oscar de Melhor Filme Internacional, Ali Abbasi e Mohammad Rasoulof tiverem de fugir do país para escaparem da perseguição do Governo. Rassoulof (vencedor do Urso de Ouro por Não Há Mal Algum), inclusive, teve de esconder as filmagens, priorizar locações remotas e driblar censores para conseguir finalizar seu projeto mais ambicioso, ganhador do Prêmio Especial do Júri no Festival de Cannes e cujo título é The Seed of the Sacred Fig (ainda não há versão oficial em português). A Alemanha, onde Rassoulof vive exilado hoje, por ter co-produzido, acolheu o filme como seu representante na tentativa de emplacar uma indicação ao Oscar de Melhor Filme Internacional.

O título original do filme mostra-se cuidadosamente escolhido, por ser também significativo. “A Semente da Figueira Sagrada”, afinal, germina asfixiando sua árvore hospedeira, como indica a cartela que abre a projeção. Logo depois disso, somos introduzidos a uma família de classe média (um casal e duas filhas), vivendo confortavelmente num apartamento de dois quartos, mas vislumbrando o deslocamento para um empreendimento com um quarto extra (as meninas, uma adolescente e outra de 21 anos, são julgadas velhas demais para dividirem um dormitório). Iman, o pai, acaba de ser promovido a investigador, estando a um passo da promoção para Juiz, o que aumentará consideravelmente seus vencimentos e oportunizará uma vida ainda melhor. Najimeh é a esposa fiel, devotada ao marido e completamente dedicada ao bem-estar da família. A subserviência não é vista como submissão, mas como meio de garantir um ambiente propício para o desenvolvimento saudável de suas filhas.

Mas elas cresceram, como os pais bem perceberam, e agora possuem opiniões próprias e personalidade forte o suficiente para questionar, por exemplo, o motivo de a Televisão tratar como “pequeno grupo de desordeiros”, uma multidão que vai às ruas de Teerã protestar não por melhores condições de vida, mas por condições de viver e ponto. “Abaixo o ditador!, “Abaixo a Teocracia” e “Liberdade Para as Mulheres”, são apenas alguns dos gritos ouvidos pela janela de casa e através dos vídeos postados na internet. Manifestantes são impiedosamente reprimidos pela polícia, em alguns casos até morrerem. Mas as emissoras locais propagam as mentiras contadas pelo Estado, que chega a divulgar a causa do falecimento de uma inconformada como “infarto”, mesmo diante de provas documentadas.

Rassoulof, por outro lado, é inteligente ao construir um roteiro em que a família se vê envolvida por praticamente todos os ramos dessa complexa máquina de repressão operada pelo Estado Iraniano. Mesmo contra a própria vontade. Rezvan, a filha mais velha, é apresentada por uma amiga a uma juventude politicamente efervescente que não se conforma com o estado das coisas. Sana, a caçula, participa indiretamente, pois está sempre por perto quando as amigas se reúnem em casa. E Najimeh tenta administrar a situação, mantendo os ânimos em baixa para que não cheguem a Iman, posto num pedestal por ser o provedor da casa. As mulheres devem se certificar de que o homem tenha jantar pronto ao chegar, banho preparado e cama pronta para descansar.

O filme, no entanto foge de qualquer maniqueísmo ao mostrar Iman como um ser humano genuíno. Diferente de outras produções, o chefe de família, aqui, é alguém que também se vê pressionado, encurralado por dilemas morais, sente-se sobrecarregado por uma explosão recorde de prisões (adolescentes e idosos incluídos). Mesmo assim, na medida do possível, é gentil, compreensivo e sempre dialoga ao invés de determinar, que seria até mais fácil para alguém como ele (um homem numa sociedade misógina). Inicialmente se mostra resistente quando recebe a ordem de assinar uma sentença de morte. Ora, mulheres estão sendo mortas por não usarem hijabs (o pano que usam para cobrir o cabelo)! Como ser conivente a isso? Mas Iman também prometeu uma casa nova e uma vida ainda mais confortável para sua esposa e suas filhas. E seu antecessor, foi demitido justamente por se recusar a cumprir a tal ordem. E agora?

Há mais cartas na manga, outros coelhos na cartola do realizador iraniano e a coisa só melhora quando ele aponta sua mira para outro aspecto da sociedade iraniana e pilar do Governo: A religião. É através dela, que a população é doutrinada a destilar ódio por quem julga ser diferente ou por quem se atreve a ser livre. Não faz muito tempo que nós, brasileiros, sofremos com um governo que atacava a imprensa (promotora de lavagem cerebral, lembra?), enquanto espalhava fake News e alimentava sua corja com mantras fascistas. Rassoulof mostra para onde caminhávamos (“são putas que querem andar nuas nas ruas!”, diz alguém ao ver pela TV uma jovem com o cabelo à mostra, calça jeans e camisa de manga curta). Ai de quem questionar as “Leis de Deus”, pois quem as questiona, o faz por sua conta e risco. “Como você sabe que elas refletem a vontade de Deus?”, pergunta Rezvan ao pai. A mãe tenta contemporizar (“o mundo mudou, releve as crianças!”). O pai decreta: “O mundo mudou, mas as Leis de Deus, não”. E esse é precisamente o ponto, onde o roteiro acerta em cheio, gabarita. Iman, como parte do sistema, instintivamente tende a preservá-lo, mal se dando conta de que está defendendo um pensamento retrógrado. No Brasil, aliás, há fundamentalistas religiosos que absolvem estupradores, acusando vítimas de se arriscarem de acordo com o que vestem.

Se em discurso, The Seed of the Sacred Fig mostra-se afiadíssimo, em termos de semiótica o resultado não fica abaixo do impecável, partindo de signos clássicos para tecer comentários eloquentes. Assim, Rassoulof lança mão do mesmo recurso de Akira Kurosawa em seu Cão Danado (1949), no qual tratava de um homem da Lei em apuros por ter perdido sua arma. Aqui, também, uma pistola carrega o simbolismo de honra, masculinidade e, em suma, poder. Iman é capaz de sobreviver a todo tipo de calamidade no trabalho, cometer atrocidades sob o subterfúgio de mero cumpridor de ordens, mas perder sua arma é como perder a própria autoridade. Inaceitável! Tanto que esse lapso, antecipado por um foreshadowing preciso (a pistola esquecida no banheiro), é o incidente que provoca uma mudança radical no comportamento de Iman, finalmente sucumbindo. E vê-lo arrastar uma mulher pelos cabelos para dentro de uma caverna numa montanha, remete diretamente à imagem do homem primitivo (das cavernas!), em sua relação com as mulheres, num plano que ilustra com perfeição a misoginia do país. Detalhes aparentemente inexpressivos, retornam à nossa memória nesse momento: faz sentido que Iman tome chá em casa com a família, mas se dê ao luxo de beber Coca-Cola com seu colega de repartição na rua (dá até pra desculpar o plano batido de Iman sendo visto pela janela tomando chá).

Nesse ponto, a narrativa já está definitivamente entregue à atmosfera de thriller, com Rassoulof imprimindo urgência e tensão à medida que a paranoia e a insegurança desestabilizam Iman, culminando num clímax tão imprevisível quanto tudo o que vimos até então. Pois é justamente quando pensamos saber para onde a trama está nos levando, que o roteirista faz questão de dar uma guinada e nos surpreender. E essa sensação está presente até no último plano (personagens também agem diferentemente conforme evoluem). Outro ponto surpreendente, mas de forma negativa, diz respeito ao colega de Iman. Ora, se ele tinha duas pistolas o tempo todo, porque não cedeu uma imediatamente, evitando o escalonamento dos problemas de Iman?

A ausência quase absoluta de trilha sonora, componente essencial para a construção da tensão, é interrompida em sequências-chave, como aquela em que a história faz uma pausa para que possamos acompanhar, horrorizados, uma universitária recebendo curativo após ser espancada numa manifestação. Uma imagem tão potente quanto a que encerra a projeção, com uma jovem andando de moto com vestimentas casuais, sem hijab e fazendo o sinal de “v de vitória” com os dedos. O retrato de uma liberdade infelizmente ainda utópica.

Por outro lado, se a juventude clama por liberdade, demonstrando possuir a energia que a geração anterior já não possui mais, seria leviano generalizar. Até no setor público é possível encontrar humanidade, mesmo que por vias tortas. Inclusive, como julgar uma mulher adulta por se manter alheia às manifestações (até tecendo críticas), quando encontra-se na difícil posição de manter a engrenagem familiar em funcionamento durante um período de profunda turbulência?

Esse é o maior triunfo de The Seed of the Sacred Fig, e que talvez tenha sido o principal motivo que levou o Governo Iraniano a censurá-lo, pois é o tipo de filme capaz de denunciar os abusos de um país, mas preservando a humanidade de seu povo, um feito notável e digno de calorosos aplausos de pé, especialmente pela reflexão que promove em escala universal.

 

NOTA 9,5

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