"A Porta ao Lado" reflete sobre relacionamentos e valores modernos
Atualizado: 19 de mar. de 2023
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O casamento pode ser entendido de várias maneiras. Alguns casais interpretam o compromisso como algo mais complexo do que a simples promessa de fidelidade, já outros dão de ombros, colocando o amor num pedestal inalcançável por sentimentos supérfluos, como aqueles que motivam uma traição, por exemplo.
Nesse contexto, o que seria uma traição? Monogamia ou poligamia? Oitavo longa-metragem da diretora e roteirista carioca Júlia Rezende, A Porta ao Lado promove orgulhosamente uma série de questionamentos, mas não demonstra a mesma volúpia em desenvolvê-los com profundidade. Para desenvolver seus argumentos, Rezende concebeu a história de dois casais vizinhos: enquanto Mari (Letícia Colin) e Rafa (Dan Ferreira) vivem num casamento tradicional, Isis (Bárbara Paz) e Fred (Túlio Starling) adotam um relacionamento aberto, ou seja, se autorizam a terem relações extraconjugais.
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Dedicando todo o primeiro ato a estabelecer as diferenças sepulcrais entre os dois relacionamentos, a realizadora brinca com a visão de Mari e Rafa, que zombam dos vizinhos acusando-os de serem “metidos a moderninhos” (“quem pensa em viver como eles não tem conta para pagar!”, exclama Rafa). Entretanto, basta a convivência aumentar para os dois lados se contaminarem, com Mari mostrando-se frustrada pela estagnação de sua relação com Rafa e almejando a liberdade compartilhada por Isis e Fred, que por sua vez enfrentam uma crise a partir do momento em que ele decide fazer seu casamento evoluir.
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O elenco, entrosadíssimo, supera o ar novelesco que impera nos conflitos da história, quase sempre descambando para discussões infrutíferas sobre desejos impossíveis de serem realizados. E embora a primeira sequência de sexo pareça ter saído diretamente de um softcore do saudoso Sexytime, as demais cenas tórridas dialogam com a ligação de determinados personagens com o prazer. Com isso, Júlia Rezende demonstra uma bem-vinda maturidade, investindo em reflexões que não se prendem a puritanismos.
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Impressionando num elenco homogêneo e extremamente talentoso, Letícia Colin brilha como Mari, personagem cujo ponto de vista é adotado como principal pela narrativa. Segura, ela transita entre o drama e a comédia com a mesma eficiência, beneficiando-se da química irresistível com Dan Ferreira, confortável ao assumir o tipo de personalidade que faz sucesso em festas. Enquanto isso, a carismática Bárbara Paz rouba a cena como Isis, divertindo ao surgir como uma hippie moderna, mas sem deixar a peteca cair durante os embates mais densos com Túlio Starling, cuja naturalidade chama a atenção. Eficaz ao retratar a mentalidade juvenil de Fred, Starling é um talento que merece ser acompanhado.
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Contando com um design de produção que contrapõe azul e vermelho em composições elegantes, A Porta ao Lado também merece elogios pelo som, tradicional ponto fraco das produções nacionais. Além disso, a montagem enxuta privilegia um ritmo ágil, muitas vezes com cortes secos, o que pode gerar estranheza em virtude da ausência de raccords, mas que não compromete o resultado. Tematicamente semelhante ao recente Águas Profundas na abordagem do relacionamento entre Isis e Fred, o filme talvez peque por não deixar margem ao subtexto enquanto soluciona seus conflitos.
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A Porta ao Lado atesta a evolução de uma realizadora que jamais deixou de jogar luz sobre os relacionamentos, mesmo em seus filmes mais comerciais, quando precisou ceder a convenções para galgar posições no cenário nacional. Moderna e sofisticada, a história concebida por Júlia Rezende faz pensar e diverte na mesma medida, seguindo a tendência de sua filmografia iniciada pelo ótimo Como é Cruel Viver Assim.
NOTA 7
* Filme visto durante o Festival do Rio 2022